No Bahianão, Projeto Musicart transforma vidas através da música

Em 2008, quando iniciou o Musicart ao lado da esposa Sileide, Rozuildo da Cruz Bonfim, não tinha experiência na elaboração de projetos, muito menos conhecimento na área musical. Inspirados pelos avanços pessoais conquistados pelo filho mais velho ao fazer aulas de teclado, eles sonharam em estender essa oportunidade de crescimento para outras crianças do Bahianão, onde moram e onde construíram a sede do projeto. No ano seguinte eles tiveram a certeza de estar no caminho certo, ao conquistar o prêmio Itaú-Unicef. 10 anos depois, sob a coordenação de Rozuildo e a presidência de Sileide Bonfim, o Musicart tem sede própria, núcleos no Bahianão e Vera Cruz, e muitos motivos para se orgulhar da trajetória de lutas e glórias.

Como nasceu o Musicart?

O projeto começou em 1º de abril de 2008, já era um sonho da minha esposa. Na época eu trabalhava no Museu de Arte Sacra, na Cidade Histórica e nas horas vagas ficava escrevendo o projeto. Quando eu chegava em casa à noite, a gente sentava e ia conversando e mudando. Terminamos de escrever. E agora? Pensava que as pessoas não iriam querer financiar o projeto no papel, porque elas não sabiam se daria certo. Mas a gente já tinha uma experiência que dava certo, porque começamos com aula de teclado com nosso filho mais velho. E vimos que ele rendeu muito, começou a melhorar o comportamento na escola, melhorar as notas. Daí tivemos a ideia de abrir para mais 10 crianças. Fizemos uma parceria com o professor e conseguimos pagar aula particular para elas. Ele fez um preço bem razoável e disse que era uma forma de contribuir também e ajudar essas crianças. A gente começou então e as aulas aconteciam na sede da Associação de Mães Educadoras (AME), que coordena o projeto. Pegamos o depoimento dessas mães depois e elas disseram que realmente os filhos haviam melhorado tanto em casa quanto na escola, porque a música estava fazendo essa transformação na vida deles. Então nós vimos na música o carro chefe, o ponto de partida para atuar na mudança de comportamento e ajudar essas crianças a serem pessoa melhores. A ideia não era nem formar músicos, mas formar pessoas melhores.

E quando a ideia começou a dar certo?

Em 2007 eu saí do museu e resolvemos começar o projeto com a cara e a coragem. Nem eu nem minha esposa sabíamos nada de música. Daí procuramos o professor de teclado do meu filho e ele disse: “esse negócio de dar aula de graça não dá certo. Eu vou abrir minha escola de música aqui e vai dar certo, porque o pessoal vai pagar, mas negócio de graça, aí eu tô fora!”. Ficamos sabendo então que tinha um seminarista no Cambolo que dava aula de teclado. Quando fomos lá, não o encontramos. Encontramos outro que dava aula de canto. Conversamos com ele e ele topou a ideia e disse: “vou amar fazer isso. Eu já fiz muito isso. Lá em Vitória (ES) eu já ensinei muitas crianças carentes a cantar”. Aí ele veio, recebendo apenas uma ajuda de custo de R$ 400 por mês. Ele vinha de manhã e de tarde dar aula para os alunos, todos os dias, andando. Começamos o projeto e ele falou que também sabia tocar flauta doce. Compramos então uma flautazinha ruinzinha que tinha no mercado. Logo o cara dobrou o preço da flauta, quando viu muita gente comprando, de R$ 0,99 para R$ 2,50. Achamos muito caro e no Centro encontramos de R$ 1,25. E o cara lá do Centro, quando viu as vendas, também aumentou o preço. Aí entramos em contato com a fábrica e compramos a caixa fechada direto da fábrica, com um preço bem menor. Começamos com 26 crianças, aumentamos para 74. No ano seguinte, em 2009, ganhamos o Prêmio Itaú-Unicef, como o projeto mais novo do mundo a ganhar o prêmio. Nenhum projeto até então havia ganhado o prêmio com tão pouco tempo de existência.

Depois do prêmio Itaú-Unicef o que mudou no Musicart?

A partir daí nós dobramos o número de alunos para 150, construímos o prédio onde estamos, com salas, dois banheiros, compramos alguns instrumentos e flautas da Yamaha. Quando começamos, a gente usava um espaço emprestado da Igreja Católica Sagrado Coração de Jesus, aqui no Bahianão, na época do padre Otaviano. Depois conversamos com outro rapaz, ele veio e incluiu aulas de percussão, cavaquinho, violão. Quando viemos pra cá a gente já tinha aula de bateria, percussão, violão, cavaquinho, teclado, canto, flauta doce, contrabaixo e guitarra. Depois roubaram o baixo, o teclado e a guitarra e agente acabou ficando sem esses instrumentos. Alguém entrou e roubou, não sabemos como. Depois resolvemos criar a orquestra, em 2010. Com quatro meses de aula, os meninos já fizeram apresentação na praça e a comunidade se apaixonou pela apresentação. Os pais gostaram muito e se preocuparam em comprar o instrumento para o filho. Foi aí que vários passaram a ter o seu próprio instrumento.

E o Edital da Petrobrás?

O edital da Petrobras saiu em 2010. A gente se inscreveu, passamos dentre os mais de 5 mil projetos inscritos, sem experiência de escrever projeto. Depois ficamos sem o patrocínio da Petrobras e tivemos que reduzir o número de atendimentos. Nós cometemos um pecado muito grande. A gente atendia 150 crianças e dobramos o atendimento, depois do contrato de dois anos. É criança demais. Tivemos que aumentar a equipe. Tínhamos 30 funcionários para atender 300 crianças. Tinha psicólogo, assistente social, a pessoa do financeiro, contador, diretora, coordenador pedagógico, um coordenador geral, os professores. Então ficou uma equipe muito grande. Não colocamos vigilante nem zelador, porque os pais faziam este trabalho como voluntários. A limpeza do espaço sempre foram as crianças que fizeram. A gente fazia uma escala e elas faziam junto com o professor. Cada grupo limpava sua sala. E todos tinham o compromisso de sujar o mínimo possível. Os meninos aprenderam muito com isso.

O que levou o projeto a escolher o Bahianão como sede do Musicart?

Nós já morávamos aqui no Bahianão e o bairro era conhecido até então como um lugar onde só tinha marginal. E a gente falou: “vamos provar para as pessoas que aqui não tem só marginal. Todo lugar tem marginal. Mas aqui também tem pessoas de bem, trabalhadoras, que levantam cedo para ir trabalhar e chegam de noite; que são honestas e precisam ser vistas com outros olhos”. Então, além de morar aqui, a gente também precisava valorizar o nosso bairro. Quando descia alguém para o Centro, era discriminado. Os pés cinzentos, porque as ruas não eram pavimentadas. Era muito fácil identificar quem era do Bahianão e quem era do Centro. Quando você procurava no Centro um professor para vir dar aula aqui, ele falava: “lá não! Deus me livre!”. E conseguimos provar para as pessoas que aqui é um lugar muito bom de se viver. Os jovens estão mostrando isso. Já tem meninos que saíram daqui e foram tocar em outros lugares. Um aluno nosso fez uma turnê com a Banda Vera Cruz e tocou em muitos lugares. E com a Banda Tôa Tôa também. Outros que estão tocando nas igrejas. A gente fica feliz quando vê esses meninos tocando por aí. A música ainda é um caminho para quem quer se dar bem na vida. Porque ela pode lhe proporcionar momentos de alegria, lazer e lhe dar uma renda mensal se você souber usar sua música corretamente.

Como está o Musicart agora?

O Musicart começou atendendo crianças, adolescentes e agora jovens de até 29 anos. Já tivemos outras parcerias e desenvolvemos muitas atividades, como aulas capoeira, português, matemática, karatê, teatro, jiu jitsu, oficinas de informática. Hoje temos no núcleo daqui 30 crianças, com aulas de instrumentos clássicos, orquestrais, que são violino, viola, violoncelo, clarinete, flauta transversal, trompete, trombone e tuba. E temos mais 30 em Vera Cruz. A ideia do núcleo de Vera Cruz é ampliar para 60 alunos e vamos abrir um outro núcleo no assentamento Lulão, na Escola Paulo Freire, que pertence a Cabrália. Eles estão muito empolgados e pediram para implantar um núcleo lá. Se der certo, ao todo serão 180 crianças. Em Vera Cruz fizemos parceria com a irmã Lilian, da Creche Cruz de Malta e funciona lá. Hoje a gente conta com o apoio dos familiares, que contribuem com R$ 25 por mês. Não são todos que pagam. Abrimos exceção para a criança não parar porque a gente via que ela tem potencial de chegar lá. E passamos a fazer eventos na sede, alugando para eventos para ajudar a pagar água, energia e ajuda de custo para os monitores. Não pagamos salário, porque não temos condições. Mas eles necessitam desse apoio. E todos estão na faculdade. Temos também a opção de apadrinhamento. A pessoa que quer apadrinhar um aluno entra em contato com a gente e contribui com R$ 60 por mês. Tem pessoas que pagam mais. O aluno apadrinhado tem que fazer uma cartinha todo mês e mandar para o padrinho agradecendo e dizendo como está o desempenho dele na escola, no projeto. Esta carta é uma forma de incentivar os alunos a ler e a escrever.

Ao longo desses 10 anos de história, qual desafio mais te marcou?

Foi quando eu perdi meu filho. A gente começou o projeto por ele. A ideia de criar o projeto foi porque, com ele, a gente viu que estava dando certo. E aí, quando ele foi tirado de nós, foi um momento muito difícil. Entrar aqui no projeto, ver que ele deu aula de violino aqui, que cada cantinho tinha um pedaço dele, foi o momento mais difícil. A minha esposa ficou um tempão sem vir aqui. Meses. Na nossa casa, ela não entrou mais. Tivemos que comprar outra casa em outro lugar, porque ela não conseguiu mais entrar na nossa casa. E a casa está aí, a gente não vendeu. O irmão dela está morando lá. Foi uma coisa que a gente enfrentou com muita dificuldade. Dar continuidade ao um projeto sabendo que quem nos inspirou não estava mais aqui. Este foi o nosso maior desafio.

O projeto tem um longo e belo caminho pela frente ...

E por falar nos 10 anos do projeto, em comemoração, estamos realizando, no final do ano, o concerto no Sesc. Fizemos um ensaio aberto aqui, para as pessoas terem uma prévia do que elas poderão ver. Vendemos canecas para conseguir angariar fundos para dar uma ajuda de custo aos monitores que estão trabalhando com os alunos e o maestro é de Salvador.