“Ite missa est”

Publicado na ed. 407 do Jornal do Sol

Entre todas as interpretações da frase latina acima citada, a mais longe da “tradução literal” parece justamente aquela que está sendo usada agora para anunciar a despedida da celebração da missa. Para as pessoas que nunca participaram de uma celebração eucarística em latim, “Ite, missa est”, significa “vão, tem uma missão”. Querendo ampliar o significado, missa significa também, licença, envio, mandato. A tradução usada agora na igreja católica é “vão em paz e o Senhor vos acompanhe”.

A frase é bonita, mas pode induzir a um equívoco, pode dar a impressão de “dever cumprido”, “obrigação satisfeita”, enquanto leituras bíblicas, homilia e sobretudo “comunhão”, significam exatamente o contrário, exigem a repartição, o anúncio, a vivência na vida social do que foi ouvido e ensinado na igreja. Receber a hóstia, sinal da presença de Cristo, requer a aceitação do ensinamento dele e a prática do que foi recebido como símbolo de vida em comunhão com as demais pessoas na realidade e nos problemas que existem no mundo.

Pode até parecer ironia, cegueira, falta de visão e preocupação, viver em paz, tranquilos, enquanto a sociedade padece de tantos males que justamente provêm da falta de  partilha, da aceitação da vergonhosa e escandalosa repartição dos recursos; quem participou  da  “comunhão” da “eucaristia”, cujo significado é justamente “boa comida”, não pode “viver em paz” sabendo que , como denunciaram todos os papas e economistas do mundo: “temos ricos cada vez mais ricos à custa de pobres cada vez mais pobres”.

Vale a pena refletir também sobre a palavra “religião” que significa “re-ligado”, ligado de novo; querendo com esta palavra designar as pessoas que se sentem de um lado ligadas a Deus, ou a um ideal, e, de outro lado, deligados das demais pessoas. Estar ligados a Deus a quem não se vê, e desligados das outras pessoas é uma verdadeira mentira. Ter um ideal, digamos por exemplo, ecológico, educacional ou político e não se sentir ligado com as pessoas que devem ser sensibilizadas sobre o assuntos da fome, doenças, corrupção etc, é uma falsidade, uma mentira inútil.

De verdade, deixa a gente perplexa e estarrecida saber que no nosso planeta existem bilhões e bilhões de “religiosos”, sejam cristãos ou muçulmanos ou qualquer outra crença positiva que “deixam” existir tamanha, escandalosa diferença social. Ninguém tem a ousadia de dizer que os ensinamentos sagrados, inspirados por Deus, consagrados por anos e séculos de estudos e práticas, sejam errados, propagam a falsidade, favorecem a desigualdade que gera tantas mortes. Então, se as religiões são verídicas, anunciam o bem, favorecem a vida, falsos são os religiosos, errados são aqueles que fazem da religião uma máscara, uma patética aparência que apenas esconde o egoísmo, a indiferença, a má vontade de respeitar a vida.


Antonio Tamarri é professor de História e Teologia