A esmola que não restaura

Antonio Tamarri

Todas as vezes que passo na frente de bancos e vejo a enorme fila de pessoas à espera de receber o “Auxilio Brasil”, fico envergonhado e com raiva. O meu desapontamento aumenta quando penso nas absurdas discussões que os parlamentares fazem para decidir a quantia e de onde tirar o dinheiro. Sobretudo me espanto em ver como é feita vista grossa com os que o recebem indevidamente. Existe um bom provérbio que aconselha a não dar apenas o peixe, mas também a vara para pescar, o direito e a capacidade para pescar de forma correta, mais proveitosa, para que a pessoa carente consiga se reerguer e não precisar mais ser ajudada.

É claro que estas reflexões não se aplicam com as doações humanitárias que estão se fazendo agora com as vítimas dos estragos provocados pelas enchentes. Esta matéria estava “chocada” a tempo e não saia por causa do medo de serem mal entendidas, pois os doadores de comida, roupa, remédios, esmolas em geral, são sempre aceitos e louvados nas emergências, mas deveriam ser questionados quando não usam a boa vontade para promover ações para a promulgação de leis que ‘combatem’ a miséria.

O ‘pian Fanfani’

Arrisco-me agora a relatar uma experiência pessoal vivida na minha infância e que acredito proveitosa para a reflexão sobre o assunto. Com o fim da segunda guerra mundial, em 1945, a Itália estava em frangalhos; nem precisa lembrar como estavam Alemanha e Japão, as três nações que tinham recebido a resposta à loucura de querer dominar o mundo. Os americanos, que antes tinham despejado toneladas de bombas, inclusive duas atômicas, sobre estas nações, bolaram o ‘plano Marshall’ para literalmente salvar a população da fome que iria matar mais que as armas. Começaram a despejar dinheiro, comida, remédios, e, para serem mais rápidos, com aviões mesmo.

Imaginem a confusão para a distribuição. Também forneciam recursos para os governos iniciarem a recuperação. O primeiro ministro da Itália, certo Amintore Fanfani conseguiu fazer aprovar leis que fizeram usar o dinheiro de forma mais proveitosa: ajudar não apenas os miseráveis - os que tinham perdido tudo, mas também a indústria, a saúde, educação. Os que não tinham nem recursos nem preparo para grandes reconstruções podiam fazer pequenos trabalhos de manutenção que não exigiam tantos maquinários: arrumar buracos da estada, limpar encostas, bueiros, fossas sépticas. Trabalhavam de 8h às 13h, recebiam um salário pequeno,mas a cada semana voltavam para casa também com uma cesta básica, tendo o tempo para se dedicar a hortas, pequenas reformas na casa própria ou de vizinhos.

As mulheres podiam ajudar na limpeza e recuperação de escola, viveiros, pequenas plantações de hortaliças a serem vendidas nas feirinhas de bairro. Todo mundo estava ocupado. Após os horrores da guerra, vivia-se a alegria do trabalho aonde todos ocupados viam a vida recomeçar uma vida simples mas digna e alegre. Cientes que salários e comida não seriam suficientes para se recuperar, inventaram também um refrão para zombar e estimular os que ‘davam mole’: ‘Efin que dura, El pianFanfani e La ligeira e La ligeira (bis)trionferá’. Dava gosto escutar este canto dos que voltavam do trabalho, com dinheirinho no bolso e cesta básica nas costas, que nós crianças íamos logo ‘saquear’. O queijo era horrível, mas o chocolate, uma delícia!

Não se recupera uma população dando esmolas, mas dando recursos para restaurar com dignidade e autonomia a própria vida. A esmola ‘compra’ o voto do miserável e o deixa miserável, enquanto a busca da recuperação o torna cidadão ativo que constrói uma nova sociedade.


Antônio Tamarri é professor de História e Teologia

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