Existem muitas orquestras tocando no silêncio maravilhosas sinfonias. No começo da noite, os pássaros se despedem com mil e um cantos e passam às corujinhas a tarefa de animar a escuridão, justamente com as notas da brisa do mar, o leve ondular das folhas caindo; para não falar dos namoros dos gatos e os latidos dos cachorros. A gente exclui os “barulhos” das orquestras, das baladas que muitas vezes não têm nada de maravilhoso para os ouvidos humanos.
Também o nosso corpo tem uma orquestra. Alegrias, tensões, emoções, fadigas, esperanças, dores, frustrações, tristezas. Tudo o que sentimos e que, talvez, atribuímos à alma, passam pelo nosso corpo e não adianta abafar estas sensações com remédios ou exagero de comida, super ativismo ou ócio.
Nada como num tempo tão delicado como este, em que vivemos os estragos de uma pandemia tão angustiante, é mais importante que ouvir o nosso corpo, prestar atenção ao que vemos, ao que ouvimos, ao que respiramos, ao que acontece e que até agora deixamos acontecer, sequer desconfiando que é o nosso entorno a causa da pandemia, desta infecção misteriosa e letal que nos tira a paz e provoca a morte.
O sonho de todos é tornar à vida “normal”
Que normalidade é esta que nos obriga a viver do jeito em vivemos? O nosso corpo grita por descanso, trabalho sadio, convivência fraterna, respeito, confiança e a gente está vendo que tem pessoas até aproveitando da pandemia para roubar, enganar, praticar crimes. Fala-se tanto em ética, honestidade, ajuda recíproca. Entretanto, sabemos que o vírus se alastra sempre mais, também, porque existem pessoas que se recusam a usar a simples máscara para não se contaminar ou infectar os outros.
Que “normalidade” é essa, quando vivemos em cidades cheias de lixo, casas sem ventilação, tráfego impossível, trabalho escravo? O ar que respiramos, a água que bebemos, a comida que compramos... Quase tudo nos dá a impressão de estar contaminado não apenas pelo coronavírus, mas pelo descaso da falta de cura e atenção. É neste contexto que o vírus se alastra, é por causa da surdez com que atendemos aos chamados da natureza, aos apelos de quem não consegue ter o indispensável para viver.
Não pode ser chamada normal a sociedade e o planeta que estamos sustentando. O vírus é apenas um aspecto, uma faceta do problema. O vírus encontra corpos e mentes ausentes, cegos frente aos problemas globais e urbanos; nesta situação ele “deita e rola” e, infelizmente, não será apenas a vacina a nos salvar.
Tornar-se-á imprescindível escutar a orquestra do nosso corpo, do que os olhos veem, os ouvidos escutam, os sentidos percebem. Ele toca sempre a sinfonia do silêncio, da calma, do respeito, da paciência, da natureza, da simplicidade. E tampar os sentidos para se livrar da “cacofonia” dos políticos corruptos, dos comerciantes mentirosos, dos religiosos alienados dos problemas da terra; se livrar das manias de comprar, gastar, aparecer e voltar à vida simples.
Só nos livraremos do vírus quando revisarmos o nosso modo de viver, de tratar o nosso corpo e o corpo dos outros; quando assumirmos a tarefa cívica de viver de forma mais sadia.
Antônio Tamarri é professor de História e Teologia
Publicado da edição 430 do Jornal do Sol
MATÉRIAS RELACIONADAS
Ir e vir, direito constitucional
Chegou a hora de transformar dificuldades em oportunidades
A vacina resolve? Mais ou menos!