A pandemia que não acaba

Antonio Tamarri

 

Laurentino Gomes, escritor, ganhador de muitos prêmios literários, já publicou dois livros sobre a escravidão e está preparando um terceiro. Na página 152 do segundo volume, cita a frase que Dom João II. O rei do Portugal em 1495, ao nomear o capitão Lopo Suares de Albergaria como governador de um entreposto de tráfico de escravos na costa da África, teria dito: “Eu vos mando à mina, não sejais tão néscio (tolo) que venhais de lá pobre”. Eis os primórdios do costume de considerar o serviço público como enriquecimento pessoal.

Na página seguinte, o marquês do Lavradio, vice-rei do Brasil, resume nesta frase como deve se comportar o servidor: “O caso não está em ser gentil-homem, o ponto está que a todos assim pareça”. E aqui sabemos que salvar as aparências, mentir, é o caminho para justificar as rachadinhas, a sonegação, as propinas; sempre dizendo o contrário, como fazia o coronel Luís Vahia Monteiro que, escrevendo  ao rei João V, teria dito: “Senhor, nesta terra todos roubam, só eu não roubo”. Mentira e corrupção, sempre andam juntos.

A monarquia se foi, veio a democracia, mas os hábitos maus continuam. A escravidão de agora é o desemprego, o custo da vida, os aumentos dos produtos alimentares, dos impostos... e os políticos continuando a legislar em favor próprio, a querer “gastar” os precatórios sem prestar conta do uso que pretendem fazer com o dinheiro do povo.

Antes era muito mais difícil se comunicar, agora sabe-se tudo  e de todos; noticias verdadeiras e falsas,  mas nunca foi tão grande a solidão que a internet e a mídia nos propiciam. Muitos, para não dizer quase todos, passam mais tempo com o celular do que conversando com outras pessoas. É a solidão da falta de diálogo, tudo bem organizado para que seja mais fácil induzir a engolir mentiras, propaganda enganosa, propostas falsas e roubos cibernéticos.

Tudo deve ser feitos às pressas; não pode ser deixado o tempo para refletir, avaliar, ponderar uma compra ou um negócio, um passeio. Estamos na época da escravidão disfarçada pelo modernismo, pelo uso das máquinas, das comidas manipuladas, os divertimentos estravagantes, as baladas que estragam corpo e espírito, pois só repetem os estrondos do exagero.

O covid 19 está colocando a sociedade bem na frente de um dilema. Os países mais desenvolvidos agora se encontrando com a terceira e quarta onda e ninguém sabe se será a última. Tem o conflito de opiniões sobre o uso ou a recusa das vacinas; enquanto isto, as ameaças bem concretas do desequilíbrio ambiental, os desastres ecológicos, as mudanças climáticas quase passam despercebidas. Até quando? O covid 19, como desafio a ser enfrentado com mais determinação, vai aparecer menos grave que a degradação pandêmica do planeta terra que, em poucos anos, não poderá mais ser mais habitável. Então a escravidão de humanos contra humanos será apenas a lembrança de um tempo em um mundo cheio de gente correndo para estar na companhia dos dinossauros.

O fim da vida humana no planeta Terra não é mais a previsão de futurológicos pessimistas, e sim, o resultado inevitável de uma maneira errada de gestar a vida, de se alimentar, divertir, trabalhar. Se continuarmos a desafiar as normas mais simples da convivência, de reciclar os resíduos, de observar as normas higiênicas, os relacionamentos interpessoais, os inimigos mais perigosos não serão os vírus, mas os companheiros irresponsáveis.


Antônio Tamarri é professor de História e Teologia - Ilustração: Pexels

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