Espirito e carne separados não existem

Antonio Tamarri

Nestes tempos de pandemia, guerras, carestias e aumento acelerado do custo da vida é comum escutar pessoas apelando a Deus. Tem muitos pregadores pedindo que o Divino, os santos, as forças sobrenaturais, socorram a humanidade. Não acho muito certo pedir que “o céu” conserte os erros dos que moram na terra. Tema mais.

Sempre contestei o monopólio, tácito ou explícito, que certos religiosos se arrogam em ter a exclusiva no que diz respeito à fé. Chegaram até a perseguir quem tivesse a ousadia de criticar crenças de outras igrejas ou congregações. A inquisição foi uma prática aberrante que certos cristãos praticaram. Chegou-se até matar, queimar, os que chamavam de “infiéis” ou apostatas. Horrível!

Outra prática, acredito ainda mais grave, e existente hoje em dia, é o monopólio sobre o espírito. A difusão espantosa de locais de culto, catedrais, templos e igrejinhas da periferia - com missionários espalhados em todo lugar -, é a prova mais clara de quanto está sendo esquecido o apelo de Jesus no Evangelho de Mateus 6,6: “Quando você rezar, entre no seu quarto, feche a porta e reze ao seu Pai ocultamente e seu Pai ao vê-lo escondido, o recompensará (...)”.

Esclareço que não estou criticando as crenças. Cada um que acredite no que quiser. Estou contestando a divisão do espírito e da matéria. Não aceito a falsa propaganda e a quase obrigação de frequentar lugares de culto para ser fiel, para rezar. Quantas pessoas tentam confirmar a própria reputação, declarando que frequentam uma igreja e tem uma religião, enquanto os que não declaram ter uma certa fé, mereceriam menos crédito? Absurdo isso, pois a fé sem obra é morta, como diz São Tiago (2,17).

O que podemos constatar é que pessoas como Jesus, Gandhi, Martim Luther King, Irma Dulce e muitas outras, não se distinguiram tanto pela fé que tinham, e sim, pelas obras que faziam, pelo conteúdo dos gestos e pelas práticas que vivenciavam.

Se pensarmos bem, existe uma virtude, uma fé, uma crença que possa ser observada sem ter algo de físico, algo de corporal a ser referida? O amor, a palavra mais usada (e abusada) do mundo precisa ser “incorporada”: o amor de mãe, o amor do coração, o amor para com a música...Sempre devem ter algo de material, visível, tocável, pessoa, ou coisa para ter sentido.

O mesmo vale para todas as expressões religiosas: fé, graças, milagres, cultos, devem possuir um suporte material; se não for assim precisam ser considerados “mortos”, quer dizer inúteis, gestos vazios. Que me perdoem os “religiosos”; minha intenção não é esvaziar o trabalho deles, mas convidá-los a dar sempre a componente humana, material, pratica e eficaz às celebrações deles. Se assim fosse, teríamos muitos mais agentes de ecologia, de limpeza cívica, de serviços democráticos em benefício aos pobres, mais defesa às mulheres, mais educação às crianças; mais saúde e menos pandemias e guerras.

Aqui reside a verdadeira mudança, a verdadeira conversão e salvação do mundo, deste mundo, pois da vida após a morte, não adianta “inventar” tantas crenças, sendo que não existem provas concretas da existência delas. Esperando o “além” de felicidade, corremos o risco de deixar que este mundo seja estragado pela falta de cuidado no dia a dia. O aquecimento global é uma ameaça que merece a mesma atenção que as pandemias, as guerras, a inflação... e não vão ter políticos idiotas que possam camuflar o combate a este perigo.


Antônio Tamarri é professor de História e Teologia - Imagem: reprodução 

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