Ulisses e a cegueira de Polifemo, das guerras e das catástrofes

Antonio Tamarri

Foi fascinante ler como Ulisses, após dez anos de batalha e ainda sem sinais de quem seria o vencedor, tem a ideia de construir um enorme cavalo de madeira, que seria oferecido como presente ao rei troiano Príamo. E decidiu a guerra, ao ser esconder em sua barriga junto com alguns guerreiros. À noite, já dentro das muralhas, tomaram Troia.

Na volta para casa, conseguiu também se livrar das ameaças de Polifemo, o gigante assassino. Na mitologia romana, Ulisses e os seus companheiros entraram no antro de Polifemo procurando comida e bebidas. Não sabiam que se tratava do local onde o ciclope dormia e guardava as suas ovelhas.

E ficaram presos, por descaso, na gruta do gigante. Ao apelo que o brutamonte esbravejava: “quem está aí, quem está aí?”; Ulisses respondia: “ninguém, ninguém está aqui!”. Ofegantes, frente à figura do gigante de um olho só no meio da testa, eles revelam sua presença. O cíclope agarra dois homens e os devora.

Polifemo então pensou: “se ninguém está na minha gruta, posso tirar a pedra enorme que a fecha para levar as ovelhas no pasto. Mas estarei atento para pegar e matar os que estavam na gruta”. Ulisses, prevendo que o gigante sairia, se enrolou, assim como seus companheiros, nas peles de ovelhas já curtidas. E se arrastaram debaixo dos animais que estavam deixando a gruta.

Saídos ilesos, Ulisses e sua tropa decidiram vingar seus guerreiros massacrados pelo assassino.   Olhando de longe o grandalhão, planejaram acabar de vez com sua ferocidade. Pegaram o tronco de uma árvore, queimaram a ponta e a transformaram em uma lança bem afiada.

Aguardaram que Polifemo cochilasse e, com coragem, enfiaram a arma improvisada no único olho do monstro, cegando-o. Assim, se tornaram livres para seguir viagem enquanto Polifemo, cego e furioso, jogava pedras enormes no mar, sem acertar o navio.

Invasão da Ucrânia

Depois de um ano de violenta guerra, com destruição em massa nas cidades ucranianas, fuga de milhares de civis e muito sofrimento, não se ouve falar em paz, trégua ou suspensão dos bombardeios. Será que vai ter um ‘vencedor’ e um ‘perdedor’? Difícil adivinhar.

Mas uma coisa a história, mestre da vida, nos diz: ‘o sangue dos mártires, seja das guerras ou das catástrofes naturais, nunca deixa de ser semente de nova vida’. Todas as invasões que a gente estudou nos bancos da escola fracassaram, mesmo as que duraram séculos.

O desejo de liberdade, democracia, participação livre e responsável na administração da própria vida e do bem comum, sempre ganham da escravidão, da perda dos direitos fundamentais, da submissão aos governos ditatoriais.

Em outra vertente, tragédias, terremotos, inundações, incêndios ou secas que provocam vítimas nos mais diferentes rincões precisam servir de alerta para que não se repitam. E gerar estudos e iniciativas que possam evitar ou amenizar os efeitos danosos destes acontecimentos.

Ruim, muito negativo, quando as lições da natureza e os erros dos ‘outros’ não geram efeitos. Quando se continua construindo nas encostas perigosas; edificando prédios sem as técnicas de prevenção; quando se cultiva a terra envenenando o solo; quando se constroem fortunas econômicas a custo do sofrimento e exploração dos trabalhadores.

São tantas as cegueiras nas quais se vive neste ‘jardim’ chamado Terra que, às vezes, acabamos por apelidá-lo de ‘inferno’. Sem sequer analisar que somos nós, os moradores e moradoras deste planeta, que o estamos transformando.

Cegueiras como a invasão da Ucrânia e todas as demais guerras, que produzem armas cada vez mais destrutivas e ceifam a vida de milhões. Se, ao contrário, utilizássemos mais os recursos naturais e humanos para produzir alimentos, lazer equilibrado, repartição justa entre as pessoas, voltaríamos a viver num ‘jardim’.

Vamos parar de jogar pedras ao mar, como fazia o cego Polifemo. E jogar atenção, cuidado e amor para com a nossa mãe Terra, para vivermos a paz. Chega de especulações políticas, religiosas ou econômicas. Vamos abrir os olhos, sem querer explorar ninguém, mas sim edificar a paz.


Antônio Tamarri é professor de História e Teologia - Foto: Reprodução

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